Outro dia escrevi um post em que falava de uma história que me foi narrada - contada ou cantada - por uma musa, Beatriz. Como os amigos que visitam este blog preferem, em geral, me enviarem emails com seus comentários, ao invés de deixá-los por aqui mesmo, a pessoa que efetivamente comentou os textos até hoje foi... Beatriz: Beatriz Viterbo. Eis que graças a Beatriz e ao diabo da tese que eu tenho que escrever me deparei de novo com uma coisa que me perturba há muito tempo: EU... e minhas certezas passageiras.
Bom, alguns de vocês - aqueles que freqüentam o blog da Gi e as páginas de Borges - já devem saber. Para os demais, que fique claro: Beatriz Viterbo murió en una candente mañana de febrero de 1929, nas linhas do "Aleph", de Jorge Luis Borges.
Quanto à continuação do título, outros de vocês também devem saber: há algum tempo atrás andei escrevendo algumas abobrinhas sobre o amor. Tratava-se de algumas linhas sobre uma frase atribuída a Gabriel Garcia Marques
: "Amo-te não pelo que tu és, mas pelo que me torno quando estou ao teu lado".
Para que embarquemos todos na mesma nau, recuemos por um instante: há uns dois anos atrás, recebi uma destas mensagens eletrônicas que têm umas imagenzinhas e umas frases bonitinhas. Esta me havia sido enviada por uma amiga - neste tempo já um pouco distante, mas que tinha sido bem próxima. Tinha umas dez imagenzinhas e frases de amor atribuídas a Garcia Marques - não me perguntem pela referência ou pela autenticidade da atribuição, isto importa pouco.
O que me intrigou foi a tal frase de número 7:
Amo-te não pelo que tu és, mas pelo que me torno quando estou ao teu lado. Achei a frase absolutamente egoísta, narcisista e nada a ver com o amor do qual eu esperava ser o objeto para aquela amiga.
Como assim? Você me ama por você, não por mim?
Mas como vocês sabem, o amor tem destas coisas... quando não se pode obter dele a declaração que se deseja, torce-se a declaração e que se dane a intenção do sujeito. Imediatamente inventei de escrever um texto - que logo enviei para discutir com meus colegas de pesquisa da universidade (inconvenientes de não ter um blog). Lá eu torturava Freud, em
Zur Einführung des Narzissmus, para que ele confessasse que minha amiga havia dito o que eu queria escutar. Concluí solenemente: O amor é um
tornar-se. Amo-te não pelo seu ser, mas pelo meu
devir, que é por ti! Achei tão maneiro que estou acabando de escrever uma parte da minha tese que trata exatamente disso. Eis aí talvez a única vantagem de um amor platônico e de se escrever uma tese: Pode-se enfiar em qualquer entrelinha o que a gente quiser pensar.
Tudo ia bem até aparecer Beatriz, mais precisamente, até Borges ver o Aleph. O que ele viu? TUDO! Bom vamos por partes, o que já é parte do problema...
Do que trata o Aleph? Em princípio de Beatriz Viterbo, um amor que se foi; e de um
Eu - O autor - que deve permanecer para fazê-lo durar.
Quando Beatriz morreu - diz ele -
noté que las carteleras de fierro de la Plaza Constitución habían renovado no sé qué aviso de cigarrillos rubios; el hecho me dolió, pues comprendí que el incesante y vasto universo ya se apartaba de ella y que ese cambio era el primero de una serie infinita. Para evitar o inevitável ele conclui: -
Cambiará el universo pero yo no, pensé con melancólica vanidad; alguna vez, lo sé, mi vana devoción la había exasperado; muerta, yo podía consagrarme a su memoria, sin esperanza, pero también sin humillación. Eis aí que a permanência do Eu é justamente a garantia da duração do amor, sem o inconveniente de ter que lidar com a humilhação da presença. Não era desta permanência que eu pretendia gozar enquanto estava falando de
devir? Idiota!
No final do conto, o devir se faz imperativo: "
Nuestra mente es porosa para el olvido; yo mismo estoy falseando y perdiendo, bajo la trágica erosión de los años, los rasgos de Beatriz".
Entre o amor e o devir, o Aleph! Mais exatamente: o
ver - o acontecimento que mostra a mediocridade de toda memória, de toda a linguagem e mesmo da literatura. Ah... a literatura que deveria assugurar a imortalidade ao nosso
Eu. Beatriz - a nossa, não a de Borges - escreveu outro dia que desejaria tornar-se um manuscrito de Aristóteles: "aí vou durar pra sempre, todo mundo vai me amar e eu não precisarei dizer que amo ninguém".
Já Borges remete, imediatamente, à mediocridade da literatura, as elaborações de Carlos Argentino: "
Tan ineptas me parecieron esas ideas, tan pomposa y tan vasta su exposición, que las relacioné inmediatamente con la literatura".
É justamente quando vê o Aleph, que todos estes "recursos" ou "faculdades" do
Eu revelam sua vacuidade: "
Arribo, ahora, al inefable centro de mi relato, empieza aquí, mi desesperación de escritor. Todo lenguaje es un alfabeto de símbolos cuyo ejercicio presupone un pasado que los interlocutores comparten; ¿cómo transmitir a los otros el infinito Aleph, que mi temerosa memoria apenas abarca? (...) Lo que vieron mis ojos fue simultáneo: lo que transcribiré sucesivo, porque el lenguaje lo es".
É senhores... o amor pode desejar o que ele quiser, ser o que quiser, pois a memória e a linguagem torcem-se, distorcem-se e desfazem-se como o próprio desejo. Já
ver,
acontecer... isso não é para nós seres desejantes, lembrantes, falantes, narcísicos e egoístas.
Como no conto, depois da experiência, o
Eu sempre retorna, não apenas para se vingar do outro, mas para constatar e verificar o que o
devir desfez. Eis a tragédia de ser
Eu: viver o acontecer como o que já não é!
Para terminar um toque de alento: a tese é defensável mesmo assim. Afinal, na academia tudo o que precisamos ser é lembrantes e falantes... e, de preferência, egoístas e narcisistas!